Crónica de Jorge C Ferreira | Abril

Abril
por Jorge C Ferreira

 

Chegou Abril e o estado de emergência não foi renovado. Algum simbolismo nesta coincidência. “Nada é por acaso” diria a minha Mãe. Por mais anos que passem sobre aquela madrugada, mais eu a sinto. Sinto-a no magistral Poema de Sophia. Sinto-a na pintura de Vieira da Silva. Sinto-a no aroma que veio com a liberdade.

Eu sei que Abril, para alguns, é coisa desconhecida. Cabe-nos a nós, que ainda andamos por aqui e vivemos aquela podridão da falta de liberdade, da polícia política, do partido único e da guerra colonial, alertar.

Lembro-me de como corremos a abraçar a liberdade. Andávamos na rua como se fossemos crianças de novo. Sentíamos que tinha começado uma nova vida. A chegada dos exilados. O “Avante” a ser vendido na rua numa esquina do Marquês de Pombal. As manifestações por tudo e por nada. Descer a Avenida que finalmente fazia jus ao seu nome. Bandeiras escondidas saíam dos armários. Dos armários saíam também muitas outras coisas escondidas. Uma imparável força.

Quando te conheci já vinhas benzida por Abril. Trazias vida atrás de ti. Uma vontade imensa de fazer coisas. Levou algum tempo a encontrarmo-nos inteiros. Fomos abrindo caixas e arrumando coisas. Uma vida que foi crescendo como a revolução. Os avanços e recuos. A militância. Tanto cartaz colado nas paredes da cidade. As canções mil vezes ouvidas e cantadas em coro. Os Poemas e os Poetas. As noites grandes e iluminadas. Os bares e as discussões sobre o estado da situação. A firmeza. As posições tomadas após longas discussões. Os debates sem fim. O sem fim das coisas. As decisões dos partidos. A disciplina partidária. Ter a coragem de contestar. De ser do contra. Esta nossa mania de não aceitar as coisas só porque sim. Dizê-lo no sítio certo. Aceitar e não ter medo do azedume. Continuar a arriscar por conta própria.

O tempo a gastar-nos a vida. O filho que devíamos ter tido. A vida a correr depressa. Dois filhos, um de cada um, e dois casamentos que se estragaram. Uma casa para pagar. A exigência do trabalho. Eu, que nunca quis ser dono de nada porque acho que nada é nosso, a viver nesta aflição. Foste o meu outro sentido. Eu a amontar livros. Tu a equilibrares as estantes. Quando quisemos ter o tal filho achámos que era tarde. Antes, tinha sido cedo. Nunca o tempo se acertou connosco. Nunca nos acertámos com o tempo.

Cá continuamos a sonhar com um mundo melhor. Esperamos continuar, até ao fim, no lado certo da vida. Carregamos todos os nossos mais antigos e as suas vontades, a nossa experiência, as lutas, os nossos Maios, e a acreditar que o mundo se move. Já prometemos um ao outro que não iremos mudar. Que caminharemos sempre com os mais pobres e os mais frágeis. De dizer não à caridadezinha. De lutar por uma sociedade mais justa, mais solidária, mais igualitária.

Os trabalhadores são isso mesmo, trabalhadores. Essa treta dos colaboradores tem muito que se lhe diga. É um modo de passar manteiga pelo lombo e levar a grelhar. No fim é mais uma gulodice para os nababos do costume.

«Sou testemunha que vocês são assim, como dizes.»

Fala de Isaurinda.

«Obrigado, minha querida. Seremos sempre assim.»

Respondo.

«Olha que do futuro só Deus sabe.»

De novo Isaurinda e vai, a beijar a cruz que traz ao peito.

Jorge C Ferreira Maio/2021(300)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Abril”

  1. Cecília Vicente

    Que privilégio, o Abril que muitos viveram, lutaram e nos seus ideais continuam enraizados como se fosse o primeiro de muitos. Abril onde os códigos levavam à lealdade da luta, um por todos todos por um…
    Que privilégio, que honra poder ler-te como se ouvisse o tempo, os passos, os cantos, as letras que perduram nas canções. Que honra poder estar no teu Abril, que faz o meu Abril também. Obrigada!
    Abraço, meu amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que bom ter-te como leitora. Que bom comungarmos o mesmo Abril. Devemos ter caminhado juntos em muitas manifestações. Abraço grande

  2. Filomena Geraldes

    Abril trouxe o maio atrás de si. O maio das flores. O mês em que a natureza floresce. Em que o nosso país deixou para trás memórias de um tempo amordaçado. Inquieto. Sem futuro.
    Conta o nosso poeta de um amor que nasceu de uma estória feita a dois. Um mesmo ideal. Uma época em que a fecunda liberdade ocupara a terra estéril e sem frutos.
    Um amor cantado a duas vozes. Desses amores que se preservam porque construídos sobre alicerces fortalecidos e combativos.
    Há quem tenha amores que começam inesperadamente. Nunca se acertam com o tempo nem o tempo se acerta com eles. Ninguém negue que são unos. Imperiosos.
    Pacientes. Reais. Românticos. Laboriosos.
    Jorge.
    Hoje escreveste uma das mais belas cartas de amor. E não disseste essa palavra mágica.
    Vês, só tu e ela sabem o segredo…?
    Eu aprendi a ler o que escreves e a sentir que és verdade, compaixão e bom senso. Que ou se é ou então não vale a pena sê-lo.
    Por isso vos quero bem. A ti e a essa mulher de bem que continua, firme, resoluta a preencher os teus dias como se ontem fosse hoje.
    Ou amanhã!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Que belo o teu comentário. Há caminhos que se fundam na luta. Ligações que se tornam fortes. Ligações que vão ultrapassando os altos e baixos da vida. Não somos gente de desistir à primeira. A luta continua. Abraço enorme.

  3. Susana Canais

    Do lado certo e sempre alerta!
    Para um mundo melhor, mais justo e humano sem condicionalismos à liberdade tão duramente conseguida.
    Um prazer lhe ler, um grande abraço Jorge.
    Viva a liberdade, sempre!

    Susana Canais

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Susana. Sempre e espero que até ao fim. Nunca deixemos que nos pisoteiem. Vamos lutar sempre pela Liberdade. Abraço

  4. Eulália Pereira Coutinho

    Belíssima esta crónica. Uma viagem no tempo, ao distante Aril e Maio de1974. O sabor da Liberdade, o sonho, a irreverência da idade. Os comícios,as manifestações, as discussões.
    Tanta coisa mudou. Tanto podia estar melhor.
    Começo a perceber, porque é que os erros históricos se repetem. Penso que só conhece verdadeiro valor da Liberdade, quem viveu anos em ditadura. Tem razão, amigo, cabe-nos a nós alertar.
    Vamos continuar a lutar por uma sociedade mais justa e sonhar que seja possível menos desigualdade.
    Parabéns pela sua bela história de amor. Desejo sinceramente que continue por muitos anos.
    Obrigada pela partilha e por estar sempre desse lado.
    Um grande abraço.

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tão linda, esta Crónica. Fala da vivência de duas pessoas apaixonadas e de pensamento livre, caminhando no mesmo sentido. Sempre ao encontro dos mais frágeis. É lindo o caminho percorrido, de corações fraternos em tempos de Abril. Esse Abril de muitas conquistas. Que precisa que estejamos atentos.
    Adorei ler esta verdadeira história de amor.
    Um poema só vosso, escrito a dois com a cumplicidade que vos une.
    Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Todas as coisas bonitas que fazemos são feitas com Amor. Vamos defender os nossos ideais até ao fim. Vamos continuar a acreditar num mundo mais justo. Abraço imenso, minha Amiga.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Éramos uns miúdos e já com resoonsabilidades, filhos. Adsom nos encontŕámos e vamos fazendo o caminho. Vamo-nos tentando complementar. Tem sido um longo caminho. Alguns por boas estradas outras nem por isso. Vamos continuar a lutar pelos mais necessitados. Abraço imenso

  6. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Viva a LIBERDADE de poder estar em qualquer sítio sem ser notado!
    Viva a LIBERDADE de poder pensar quase sem ter que medir as palavras;
    viva a LIBERDADE de pensamento e de acção sem se preocupar com a sua própria sombra!
    Porém, não foi fácil, e ainda não é. Ainda há condicionalismos de opinião, travões a fundo para certas “sensibilidades”, só porque sim!
    Ainda não se pode voar como a gaivota, livremente!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. A Liberdade nosso grande valor. Liberdade que ainda não ée inteira. A precaridade do trabalho coarta a liberdade de decidir. Temos de estar atentos meu Amigo. Ainda iremos ser livres de voar. Grande Abraço.

  7. Isabel Torres

    O 25 de Abril,deliciosamente, descrito na 1 pessoa. Eu já sou filha dessa liberdade. Só esse “acontecimento” me
    Permitiu estudar e dar um salto cultural,que sem ele seria impossível. Sim. A solidarieddade sempre. A luta pelos mais frágeis sempre. O pensamento livremente verbalizado sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Obrigado filha de Abril tal como os meus filhos. Defendam sempre a Liberdade, uma liberdade a sério. Caminhem semppro ao lado dos mais desportegidos. Abraço grande

  8. Regina Conde

    A Liberdade de se viverem intensamente. A cumplicidade nos livros. O Abril nas vossas vidas renovado em cada dia. A linda Isaurinda a confirmar quanto vos gosta. Linda história que partilhas. A vossa! Abraço grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Um viver cúmplice. Um caminhar lado a lado. Adivinhar a necessidade do outro. Dar o esoaço que o outro necessita. Abraço enorme

  9. Ivone Teles

    Meu amigo, a Cristina diz que é um poema; eu multiplico este poema para abarcar tantos que estão no texto. Foi um belo encontro o Vosso. Gosto que sejam um verdadeiro casal na vida , partilhando o amor e os ideais. Que bom meu amigo/ irmão. Afinal, foram dois versos de um Poema Novo, belo e cúmplice. As pessoas têm uma vida e é muito bom que seja vivida em pleno. Beijinhos para Vós os dois. À Isaurinda diz-lhe que gosto de saber como é tua amiga, o teu ” alter-ego.”. Ainda havemos de nos encontrar, todos. Beijinhos

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone minha Amiga/Irmã. Tudo pode ser um Poema. É necessário Amor e vontade de o construir. Somos iguais a todos os outros nos caminhos da vida. Temos ideaus fortes e não trememos. Ainda vamos descer a Avenida, minha querida. Abraço Abraço enorme.

  10. Cristina Ferreira

    Uma crónica que é um poema. Viva a liberdade. Vivam os poetas que mantém viva a chama e os valores de Abril.
    É sempre um prazer imenso te ler.
    Obrigada

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. É sempre um prazer ler os teus comentários. Um Poema são os nossos ideais, os nosdis filhos e a Librrdade nossa Mãe. Abraço grande, grande

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